quinta-feira, agosto 16, 2007

"Sempre que for deixai-me alguma coisinha"

Procurando fugir à rotina dos habituais centros comerciais, dirigi-me à baixa do Porto, para S.ta Catarina, outrora, grande rua de comércio.
Estacionamento fácil na Praça dos Poveiros, caminho até à Praça da Batalha e daí vou para S.ta Catarina.
No tempo em que ia de autocarro, primeiro às compras com a minha mãe e mais tarde correndo atrasado para universidade, a Praça da Batalha era o ponto de chegada e partida da cidade.
Reza a tradição que o nome desta praça vem duma batalha entre serracenos e locais, que estes perderam copiosamente.
Eu sempre gostei desta praça, pena é que continue a haver tanto lixo nas ruas. Agora há também umas obras para o metro de superfície. Muito incómodas, por sinal.
Já em S.ta Catarina, interpelou-me uma voz trémula: - Dê-me algum para um sopinha - assim foi que pediu.
Sendo uma zona comercial, proliferaram ali uma quantidade e variedade impressionante de desvalidos.
No passado, lembro-me sempre daquele que estava na Rua de S.ta Catarina, junto à esquina onde se cruza a Rua Passos Manuel. Exibia de forma ostensiva a infelicidade das pernas amputadas.
- Sempre que for deixai-me alguma coisinha! - dizia aos que passavam, o pobre.
Eu dobrava aquela esquina diariamente para ir apanhar um autocarro e habituei-me a vê-lo. De estatura pequena, tinha um aspecto precocemente envelhecido, um rosto escondido por uma barba descomposta e amarelada pelo fumo de um cigarro constante.
A forma como ele dizia era tão sugestiva como a de um pregão e tão constante como a de uma prece, de um mantra.
Tinha uma voz sonora, que se espalhava pela rua, pois apesar da indiferença do olhar da maioria dos que passavam, ele era sempre ouvido, mesmo escondido na multidão.
Um dia ele foi-se, desapareceu e de certo ninguém sabe porquê. O que sei é que tantos anos passados e ainda pareço ouvi-lo, na esquina de sempre.

2 comentários:

Sandra Leite disse...

Ricardo do céu,

Fico impressionada o quanto há de requinte no estilo do português de Portugal. Encanta-me a escrita...há uma melodia entre essas palavras sem igual.
Porque abandonamos tanto nosso falar? :(

bjs,

linda 6a feiraaaa

Sandra

rb disse...

Sandra,
Obrigado pelo incentivo, eu penso o mesmo em relação à língua brasileira, sobretudo a falada e cantada. Gosto de vogais abertas e consoantes carregadas.

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