quarta-feira, março 28, 2007

O 'sempre' e o 'nunca mais'

O José Manuel Fernandes dedicou o editorial de ontem no Público ao resultado do programa da RTP, O Melhor Português de Sempre, em que ganhou António de Oliveira Salazar. O facto tem sido vivamente discutido na blogosfera, em conversas de café e um pouco por todo lado. O Escaninho não pode ficar indiferente.

A vitória do ditador de Santa Comba Dão, por mais estranho que pareça, não surpreendeu. Desde o início que era anunciada, quando a RTP, num erro de palmatória, optou por não inclui-lo na lista inicial. Para muitos, uma verdadeira afronta a que era preciso dar troco.

São apontadas várias causas para este inusitado desfecho do concurso televisivo. Uma delas é sem dúvida a militância que existe em torno do personagem Salazar, tal como acontece com Álvaro Cunhal, e que não se verificava em relação a outras figuras históricas. Aliás, deve dizer-se que este resultado permite especular uma confrangedora ignorância dos portugueses sobre a história do seu país.

Outra explicação aventada é a de que o voto no ditador traduz um descontentamento profundo de muitos cidadão em relação aos políticos que nos têm (des)governado nestas últimas décadas. Num quadro de "crise" facilmente se instala o sentimento de que é preciso mais autoridade ou a chamada mão de ferro por parte do Estado.
Dizem que muita da popularidade que Cavaco conquistou foi à custa dum estilo autoritário e decidido. E também que agora o segredo de Sócrates é o de cultivar um estilo parecido ao do actual PR. Não será tanto assim, digo eu.
Digamos que há uma certa "nostalgia de autoridade". Nos fóruns, como os do Manuel Acácio na TSF, é vulgar as pessoas rematarem o seu revoltado telefonema com um simples e lapidar: - O que este país precisa é de um novo Salazar!

Este raciocínio é perigoso porque alimenta os extremismos. Não é à toa que a extrema direita vem granjeando terreno. Veja-se o que se passa na França. E em Portugal, onde ainda ontem se noticiava a infiltração de grupos de extrema direita nas associações académicas portuguesas.

A pouco e pouco vai-se alimentando a ideia de que afinal o homem não era assim tão mau, não comia comunistas ao pequeno-almoço, nem nada dessas coisas. E até havia coisas boas, como alguns bons costumes que entretanto se perderam. Alguns até se atrevem a dizer que hoje há menos liberdade do que naltura, embora duma outra forma.

Assim, devagar e devagarinho, vai caindo no esquecimento da história toda a ignomínia que era praticada nesse tempo pelo ditador e seus acólitos. Mas para o nosso bem, a censura, a perseguição, o exilo, a prisão, a tortura, o assassinato políticos jamais podem ser olvidados. Ainda hoje, o Público dá à estampa um exemplo repugnante desse tempo: a devassa que a PIDE fez à vida e à obra do escritor Miguel Torga, considerado um "anti-situacionista". Os documentos tornado públicos pela Torre do Tombo podem ser consultados a partir daqui.

Em conclusão, que isto já vai longo, são enviesadas as interpretações que só olham para este fenómeno como um reflexo do descontentamento que hoje existe em relação aos nossos governantes, como tenta fazer passar o citado editorial. Quando, o que não pode de maneira nenhuma ser ignorado são os sinais preocupantes de que "os tempos da outra senhora" vem paulatinamente a esbater-se da memória.
Por isso é importante lembrar e relembrar a todo o tempo o que significa o "sempre" e o "nunca mais" daquele célebre dito do 25 do 4.

5 comentários:

Anónimo disse...

...

coisas que se pensam disse...

Meu caro Escaninho, à falta de melhor o que dizer sobre todo este assunto, digo-te aqui o que disse num comentário ao meu próprio post sobre o mesmo assunto (de repente isto soou-me a 'mim própria a olhar no meu umbigo'... credo!). Cá vai:

António de Oliveira Salazar.

António&de&Oliveira&Salazar.
Três nomes em sequência regular...
António é António.
Oliveira é uma árvore.
Salazar é só apelido.
Até aí está bem.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem.

.......................

Este senhor Salazar
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A água dissolve
O sal,
E sob o céu
Fica só azar, é natural.
Oh, c'os diabos!
Parece que já choveu...

........................

Coitadinho
Do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho...

Bebe a verdade
E a liberdade.
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.

Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé.
Mas ninguém sabe porquê.

Mas enfim é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé.
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até
Café.

(Fernando Pessoa, 1935)

Uma coisa para ti!

rb disse...

Obrigado pela oportuna referência, Coisas que pensam. Já agora aqui vai também esta que encontrei no Crítico:
O Salazarito que há em ti,
Anão português em pose mundana,
É míngua de honra e cobiça de fama.
Bácoro invejoso que não ri:
Mesquinho e vil sacana
Todos abordas em pose de cama.
Foste formatado pelo teu herói
Em anos e anos de escravidão.
Julgas libertar-te da servidão
Batendo nos outros onde te dói,
Sargento hierárquico que não ama,
Tu, que apenas existes de bastão.
Não vês que és um galo capão,
Ao qual a engorda das vaidades
Te sai pelo cu em vacuidades?!

Leite de Faria - 1957

Rui Guerra disse...

relembro que Miguel Torga esteve preso, na década de 40 (?), por aquilo que escreveu.
agora o concurso era apenas isso mesmo. só se contaram 150 mil votos. destes 40% foram para o vencedor, 60 mil aproximadamente.
Sabendo que os votos eram por telefone, que valor isto tem?
Cada pessoa pode votar do seu telefone, do seu telemóvel, do telemóvel de um familiar e com um pouco de jeito do trabalho, ou de uma cabine telefónica.
O que dará em média 4 a 5 telefonemas por pessoa. Ou seja, 12.000 a 15.000 votantes. Isto é preocupante? não. o partido "qualquer coisa" fascizoide tem o memmo número de votos.
Por isso, isto não tira o sono.
Agora tudo seria evitado, se o nome de Salazar tivesse sido logo retirado do concurso. Aí não haveria mobilização política e o concurso teria ganho com isso.
há 20 anos, não se fala de outra coisa senão do perigo do neo-fascismo e até agora o que realmente aconteceu?
Obviamente, que as mortes provocadas são de censurar.
Basta não lhes dar cobertura mediática e ninguém quer saber dos gajos para alguma coisa.

rb disse...

Pois eu também acho que o concurso era uma treta e não passava disso mesmo. Só que a rtp acabou por dar-lhe a relevância que ele não tinha, pela forte divulgação que lhe deu e aí residiu o erro. Grandes paineis publicitários espalhados por tudo o que é lado e até nas caixas de multibanco se apelava ao voto no melhor português.
Sem saber muito bem o buraco onde se estava a meter, a rtp acabou por criar um facto político. Não foi por acaso que o partido comunista quis ir a jogo, com o empenhamento visível de Odete Santos.
Lêem-se vários artigos de opinião, por ex. o de ontem do historiador Rui Ramos no Público, e na blogosfera também, a explicar o inesperado resultado do concurso. E os neo-salazaristas, camuflados até aqui, aparecem.
Não concordo nada que o Salazar devesse ser excluído à partida. Para o bem e para o mal é uma figura proeminente da nossa história.